Saber cuidar para novos tempos – II
Todos nós fazemos parte da história individual e coletiva, as ideias e os pensamentos refletem o nosso comportamento na relação com o mundo e com o outro. O mundo começa no local onde estou situado: a família, o trabalho, a cidade, o território. Como Eu estou nesse contexto.
Reflexão para a ação no método VER “como comunidade”, JULGAR “como comunidade” e AGIR “como comunidade”.
Sintomas da crise civilizacional
O mal-estar da civilização aparece sob o fenômeno do descaso e do abandono, numa palavra, da falta de cuidado.
Existe um descuido e um descaso pela vida inocente de crianças usadas como combustível na produção para o mercado mundial. Os dados da Organização Mundial de Infância diz que 168 milhões de crianças trabalham. América Latina, África e Ásia lideram esses números. A essas crianças são negadas a infância, o sonho, a educação de qualidade. No Brasil os números predominam entre negros e pardos. Já olhamos ao nosso redor, aqui na cidade onde moramos?
Existe um descuido e um descaso latente pelo destino dos mais pobres e marginalizados da humanidade, flagelados pela fome crônica, mal sobrevivendo da tribulação de muitas doenças, antigamente erradicadas e atualmente retornando com grande virulência. No Brasil, segundo o Pnad-IBGE, 104 milhões de brasileiros vivem com apenas 413 reais mensais. Perambulando pelos arredores de nosso território e nossa cidade é possível ver o abismo social que existe no país?
Existe um descuido e um descaso imenso pela sorte dos desempregados e aposentados, sobretudo dos milhões e milhões de excluídos do processo de produção, tidos como descartáveis e zeros econômicos. Esses nem sequer ingressam no exercício de reserva do capital. Perderam o privilégio de serem explorados a preço de um salário mínimo e de alguma seguridade social. Bem perto de nós já é possível afirmar um grupo significativo de profissionais de qualidade desempregados e excluídos do sistema de produção e somando a àqueles da economia informal e Uber.
Existe um descuido e um abandono dos sonhos de generosidade, agravados pela hegemonia do neoliberalismo com o individualismo e a exaltação da propriedade privada. Menospreza-se a tradição de solidariedade, da cooperação. Faz-se pouco dos ideais de liberdade e de dignidade para todos os seres humanos. Essa situação se aprofunda a olhos vistos com as posturas e discursos autoritários.
Existe um descuido e um abandono crescente da sociabilidade nas cidades. A maioria dos habitantes sente-se desenraizados culturalmente e alienados socialmente. Predomina a sociedade do espetáculo, do simulacro e do entretenimento. Olhemos ao nosso redor o desrespeito pelo espaço público em atos como jogar lixo no chão, ou parar em fila dupla. Onde fica a cidadania?
Existe descuido e descaso pela dimensão espiritual do ser humano, pelo espírito de gentileza que cultiva a lógica do coração e do respeito por tudo o que existe e vive. Não há cuidado pela inteligência emocional, todo tipo de violência e de excesso é mostrado pelos meios de comunicação com ausência de qualquer pudor ou escrúpulo. Será que esse descuido também ocorre nas redes sociais onde predomina o anonimato abrindo espaço para todas as formas de bullying?
Existe um descuido e um descaso pela coisa pública. Organizam-se políticas pobres para os pobres; os investimentos sociais em seguridade alimentar, em saúde, em educação e em moradia são, em geral, insuficientes. Objetivamente é só ver o funcionamento e a precariedade da escola pública, incapaz de concorrer com a escola privada.
Existe um descuido vergonhoso pelo nível moral da vida pública, marcada pela corrupção e pelo jogo explícito de poder de grupos chafurdados no pantanal de interesses corporativos. Esses interesses estão cronicamente em todos os níveis do poder, municipal, estadual e federal.
Existe um abandono da reverência, do respeito, indispensável para cuidar da vida e de sua fragilidade. A continuar esse processo, até meados do século XXI terão desaparecido definitivamente, mais da metade das espécies animais e vegetais atualmente existentes.
Existe um descuido e um descaso na salvaguarda de nossa casa comum, o planeta Terra. Solos são envenenados, ares são contaminados, águas são poluídas, florestas são dizimadas, espécies de seres vivos são exterminadas; um manto de injustiça e de violência pesa sobre dois terços da humanidade. Um princípio de autodestruição está em ação, capaz de liquidar o sutil equilíbrio ecológico do planeta e devastar a biosfera, pondo assim em risco a continuidade do experimento da espécie homo sapiens.
Existe um descuido e descaso generalizado na forma de se organizar a habitação, famílias são obrigadas a viver em cômodos insalubres. Milhões são condenados a viver em favelas sem qualquer qualidade de vida, sob a permanente ameaça de deslizamentos fazendo a cada ano milhares de vítimas, também sujeitos a violência das drogas e violência do Estado. Você já teve a curiosidade de verificar o número de mortes na periferia de sua cidade?
Existe um descuido das relações sociais em geral, e estratos importantes da juventude revelam decadência para resolver conflitos interpessoais e institucionais, normalmente superáveis mediante o diálogo e a mútua compreensão. Atulhados de aparatos tecnológicos vivemos tempos de impiedade e insensatez. Sob certos aspectos regredimos á barbárie do espírito.
BOFF, L. Saber Cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 1999.
COSTA, J. F. A Ética e o Espelho da Cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
MORIN, E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil: 2002.
Para reflexão e meditação: Ef 5, 1 a 20